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Proibição da presença de afegãs em ONGs expõe divisões no Talibã

Em 24 de dezembro, o Talibã proibiu o trabalho de afegãs em ONGs locais e internacionais, gerando reação da comunidade internacional, além de uma forte oposição no país

Foto: RFI

Em 24 de dezembro, o Talibã proibiu o trabalho de afegãs em ONGs locais e internacionais, gerando reação da comunidade internacional, além de uma forte oposição no país. A medida também expõe as divisões que atravessam o movimento talibã, enquanto o Afeganistão continua a se afundar em uma grave crise.

Para a jovem Sahar, o ano de 2022 não poderia ter terminado pior: em 24 de dezembro, ela recebeu uma mensagem por WhatsApp de um de seus colegas compartilhando o último decreto do Talibã. O texto evoca “graves denúncias sobre o desrespeito ao uso do hijab” e exige que “todas as organizações nacionais e internacionais deixem de colaborar com as mulheres”.

Em caso de recusa a se submeter a essas novas regras, as ONGs terão suas licenças revogadas, o que as impediria de continuar a exercer suas atividades no Afeganistão.

O choque é imenso para essa trabalhadora humanitária de 24 anos. “Comecei a chorar sem parar”, conta a jovem, cujo nome verdadeiro e o de sua organização não são citados por questões de segurança. “Nunca imaginei que isso aconteceria. Naquele dia perdi meu direito mais importante: o de trabalhar.”

Com este decreto, os talibãs regridem ainda mais os direitos das mulheres no Afeganistão, já privadas do acesso à educação, a academias e estádios de esportes, praças, jardins, além de outros lugares públicos.

Desastre socioeconômico

Mas a decisão também se revela um desastre socioeconômico. Com seu trabalho, Sahar era a única que podia suprir as necessidades dos nove membros de sua família. “Todos os homens da família perderam o emprego. Eu era a única que podia pagar o aluguel, a alimentação, os remédios e a educação dos meus irmãos mais novos.”

Enquanto o mundo inteiro comemorava a passagem para o ano novo com fogos de artifício, o Afeganistão, ao contrário, mergulhava mais e mais no obscurantismo. O mito de um “Talibã 2.0”, mais moderno e pragmático, construído durante as negociações de Doha com os Estados Unidos, foi destruído nos últimos meses. O Talibã agora parece determinado a arruinar a vida de sua população e erradicar as mulheres da esfera pública.

Nesse cenário, cresce a revolta da população e as manifestações espontâneas aumentam, apesar do risco de repressão. O fato novo e de grande relevância é que os sinais de divisões dentro do Talibã são cada vez mais evidentes.

De acordo com diversas fontes, a proibição de as mulheres afegãs trabalharem em ONGs teria aumentado as tensões dentro do movimento. “Esta decisão representa a opinião de uma minoria entre os talibãs. A maioria, mesmo entre os líderes do movimento, se opõe a esta medida”, afirma, de Washington, Zalmay Khalilzad, ex-enviado especial dos Estados Unidos ao Afeganistão, que esteve na linha de frente das negociações de Doha com o Talibã, em 2020.

Nascido e criado no Afeganistão, Zalmay Khalilzad deixou seu cargo de enviado especial em 2021, mas continua a manter diálogo com oficiais do Talibã. “Tive contato com eles no passado e continuo a falar com eles hoje, e eles se opõem amplamente a esta decisão”, ele revelou.

Kandaharis

Na opinião de especialistas, o movimento vive uma cisão entre o Talibã moderado e um círculo ultraconservador reunido em torno de Hibatullah Akhunzada, um emir solitário da cidade de Kandahar, no sul do Afeganistão.

Apelidada de “Kandaharis” ou simplesmente de “Shura”, “o conselho”, esta velha guarda talibã do mundo rural estaria por atrás dos mais polêmicos decretos talibãs, como o banimento das mulheres das escolas secundárias e depois das universidades, ou ainda sua exclusão da maioria dos empregos no serviço público. Desde novembro, as afegãs também não podem mais ir a parques, ginásios e ou frequentar banhos públicos.

Os primeiros sinais de divisão dentro do movimento apareceram com a surpreendente reviravolta no acesso das meninas à educação. No final de março, o Talibã fechou as portas de escolas secundárias e faculdades para as estudantes, poucas horas depois de uma reabertura há muito anunciada. Uma decisão brutal que causou grande sentimento de angústia e frustração entre as alunas.

O ministro afegão das Relações Exteriores, Sher Mohammad Abbas Stanikzai, demonstrou então publicamente seu desacordo durante um discurso transmitido pela televisão durante uma reunião de dirigentes do Talibã em Cabul.

Sucessão de ministros

O movimento também parece ter hesitado quanto ao acesso das mulheres às universidades. Depois de dar sinal verde, sob a condição de se respeitar uma separação estrita entre alunas e alunos, Abdul Baqi Haqqani, então ministro do Ensino Superior, foi finalmente demitido em outubro de 2022. Dois meses depois, seu sucessor, o ultraconservador Nida Mohammad Nadim, proibiu as mulheres de ingressarem no ensino universitário.

Enquanto isso, o então ministro da Educação, Noorullah Munir, que prometeu, em setembro de 2021, que as mulheres teriam permissão para estudar, teve um destino semelhante ao de Haqqani. Ele foi demitido no ano passado em favor de uma pessoa próxima do “conselho” de Kandahar e do emir Hibatullah Akhunzada.

“Uma minoria poderosa e influente se reuniu em torno do emir”, analisa Ahmed-Waleed Kakar, fundador da mídia The Afghan Eye. “A questão agora é se esse tipo de decisão pode continuar, apesar da oposição cada vez mais forte da população, mas também dentro do próprio movimento talibã”, ele acrescenta.

Essas divisões, no entanto, têm poucas chances de causar a implosão do Talibã, de acordo com Kakar. “Os talibãs estão ideológica e religiosamente comprometidos em obedecer a seu líder, mesmo quando discordam entre si. A única situação em que se poderia desobedecer a seu líder, seria se esse fizesse algo considerado anti-islâmico.”

“Acho que os líderes do Talibã precisam se unir e se opor a essa decisão [de proibir mulheres afegãs de trabalharem em ONGs]”, declarou o diplomata Zalmay Khalilzad, que afirma que os talibãs com quem ele está em contato dizem “entender” seu ponto de vista, mas pedem “paciência”.

“Se eles não o fizerem, seria como dar as costas ao povo afegão. A raiva aumenta na opinião pública e oferece argumentos para aqueles que querem começar uma guerra. Mas isso não é o que o povo quer, nem mesmo o que o Talibã quer”, ele explica.

“As mulheres do Afeganistão não serão esquecidas”

Enquanto o Talibã implora por tempo, cresce o desespero das mulheres afegãs, que veem, sucessivamente, as portas se fecharem para elas. Em Cabul, Sahar se preocupa com o financiamento do projeto pelo qual é responsável. “Estamos preparando projetos de longo prazo e estávamos otimistas com a captação de recursos”, ela explica. “Mas com a decisão do Talibã, os doadores não têm mais tanta certeza de continuarem com seu financiamento.”

Apesar desse cenário de desolação, Sahar se recusa a ceder ao fatalismo e também renova suas esperanças para o ano novo. “Peço às pessoas de todo o mundo, doadores, que não desistam do Afeganistão. A situação é muito difícil, mas não vou desistir. Continuo otimista para 2023. Haverá dias melhores. As mulheres do Afeganistão não serão esquecidas.”

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