Contra Bolsonaro, FHC e Lula vivem novo capítulo em relação de 45 anos

O cientista político Francisco Weffort, que conviveu de perto com os dois, afirma que o afastamento foi muito mais político do que ideológico

Em meados de 1978, a antiga cantina Leão de Ouro, na cidade de São Bernardo do Campo (SP), reuniu numa mesma mesa o professor Fernando Henrique Cardoso e sindicalistas liderados por Luiz Inácio Lula da Silva.

 

Estavam ali fechando o apoio dos metalúrgicos à campanha de FHC para o Senado, na eleição que seria disputada em novembro daquele ano.

Ao fim da refeição, os dois futuros presidentes da República e os outros comensais comemoraram o acordo num coro de “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”, hino informal contra a ditadura, de Geraldo Vandré.

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A história é relembrada pelo ex-sindicalista Djalma Bom, amigo de Lula, um dos que estavam sentados à mesa. “A gente via o Fernando Henrique como um aliado na defesa de pautas salariais e da democratização. Num comício em Osasco dias depois, Lula o chamou de reserva moral da nação”, diz Bom.

Na semana passada, uma foto de Lula e FHC durante almoço na casa do ex-ministro Nelson Jobim surpreendeu o mundo político.

Houve diversos elogios à civilidade de ambos, unidos contra as atitudes antidemocráticas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), mas também críticas de petistas e tucanos contrários ao gesto de aproximação com o respectivo adversário político.
Se analisado num horizonte maior, no entanto, o almoço foi apenas mais um lance da montanha-russa que tem sido a ligação entre os dois líderes políticos ao longo de 45 anos de convivência.

A primeira década dessa relação foi indiscutivelmente de grande afinidade entre os dois. Em 1978, FHC acabaria não se elegendo (ficou como suplente, segundo as regras da época), mas o convívio com Lula se manteve próximo.

Dois anos após a cantoria no restaurante, eles se encontraram em junho de 1980 no jornal Folha de S.Paulo, num debate promovido pelo Folhetim, antigo suplemento dominical do jornal.

O tema eram as negociações salariais entre trabalhadores e patrões, e os dois concordaram praticamente sobre tudo. Analisaram as dificuldades de que isso fosse viável num contexto de ditadura e, num clima amistoso, trocaram provocações bem-humoradas.

Fernando Henrique Cardoso, acadêmico por natureza, fez uma longa digressão teórica sobre o assunto, citando exemplos de outros países, ao que Lula gracejou: “O professor Fernando Henrique Cardoso foi curto na sua explanação e, se fosse contar tudo, acabaria cansando o plenário”.

O troco veio em seguida, quando o professor elogiou a coragem do sindicalista, que acabara de passar 31 dias preso pelo regime. “Está aí um dos comandantes [da resistência à ditadura], vivo e ao nosso lado. Apesar da cadeia, que aliás fisicamente fez bem a ele.”

Terminado o debate, Lula saiu do jornal e parou num boteco ao lado do prédio da Folha, na alameda Barão de Limeira, centro de São Paulo, onde pediu uma cerveja e ficou conversando com apoiadores e jornalistas. FHC chegou alguns minutos depois, mas não entrou.

“Os dois se falaram rapidamente na calçada, e o Fernando Henrique disse a Lula que depois precisavam conversar com mais calma”, lembra Edgard Alves, que trabalhava na seção de esportes do jornal.

Apesar da camaradagem, FHC não se filiou ao PT, embora tivesse participado de reuniões em São Bernardo do Campo para discutir a criação do partido, o que ocorreria em fevereiro de 1980.

“O Fernando Henrique tinha uma visão de que o país naquele momento precisava de um partido popular, porém amplo, não um partido classista como nós queríamos. E que esse partido já era o PMDB, onde ele estava”, afirma Bom.
Ambos seguiram do mesmo lado na campanha das Diretas, em 1983 e 1984, e depois começaram a se distanciar politicamente, conforme suas ambições políticas cresciam.

O cientista político Francisco Weffort, que conviveu de perto com os dois, afirma que o afastamento foi muito mais político do que ideológico.

“A política de pequena escala confunde a política de grande horizonte. O cara quer um lugar, o outro quer o mesmo lugar, aí complicou”, diz Weffort, que foi secretário-geral do PT e ministro da Cultura no governo FHC.

Segundo ele, o que diferencia os dois é basicamente a origem social, porque a essência dos governos de um e de outro, afirma, foi bem parecida.

Em 1993, PT e PSDB ensaiaram uma união para a disputa da eleição do ano seguinte, mas que acabou fracassando à medida em que o Plano Real era concebido e que o PT apostava na dianteira de seu candidato nas pesquisas.

Com a vitória de FHC, Lula e a esquerda grudaram no tucano o rótulo de “neoliberal”, algo que ele nunca aceitou. “Na verdade, o Fernando Henrique não fez um governo neoliberal, mas sim liberal-democrata, com ênfase no social. Assim como foi o governo do Lula”, afirma Weffort.

Os 16 anos de mandatos presidenciais de FHC e Lula (1995-2010) foram o ápice da agressividade mútua, com acusações que muitas vezes extrapolavam o campo programático e resvalavam para o da ética. O tucano falava de mensalão, e o petista de privataria.

“A grande ruptura foi quando o Lula assumiu a Presidência e disse de ter recebido uma herança maldita. É como se tivesse apunhalado o Fernando Henrique pelas costas”, diz Xico Graziano, que foi secretário particular e ministro de FHC.

Segundo ele, o tucano nunca escondeu essa mágoa. “O FHC passou o bastão ao Lula até com um certo gosto de ver um operário na Presidência. E não era herança maldita coisa nenhuma, o Lula colheu no seu governo as laranjas que o FHC plantou”, afirma Graziano.

Para Djalma Bom, se ocorreram atritos entre ambos, não foi por causa do petista. “O Fernando Henrique sempre teve um pouco de vaidade, parecia um galã de cinema. O carisma e a inteligência do Lula o incomodavam”, diz.

Houve pequenos períodos de trégua neste período de ânimos exaltados entre os dois. Um deles foi em 2002, quando o Brasil precisou recorrer ao FMI e o tucano, ainda presidente, chamou os candidatos à sua sucessão para conversas em Brasília. Lula foi o único a ter a deferência de um bate-papo a sós.

Em 2005, o petista fez um gesto de boa vizinhança e incluiu FHC e o ex-presidente José Sarney em sua comitiva para o funeral do papa João Paulo 2º, em Roma.

Em 2013, já com Dilma Rousseff na Presidência da República, os ex-presidentes fizeram outra viagem juntos, dessa vez para o velório de Nelson Mandela, na África do Sul. Foram 20 horas de contar causos nas viagens de ida e volta, disse o tucano na época ao jornal Valor Econômico.

“Lembramos de muita coisa do passado, coisas de São Bernardo [do Campo], das quais eu participei muito e Lula lá era o líder”, afirmou FHC na ocasião.

As mortes das respectivas mulheres também amainaram ressentimentos entre os dois ex-presidentes. Lula esteve no velório de Ruth Cardoso, em 2008, e FHC visitou o hospital onde morreu Marisa Letícia, em 2017.

Mas foi a presença de Jair Bolsonaro na cadeira presidencial que já foi de ambos que serviu para mais uma vez juntar os dois rivais políticos.

“Eles estiveram juntos no fim do período militar e logo depois, na campanha das Diretas. O Bolsonaro não é um candidato dentro do corpo da democracia, e ele provoca essa união. É o mesmo princípio de antes”, afirma Weffort.

Graziano, que achou “lamentável” a foto do antigo chefe com Lula, diz que os dois políticos mantêm uma relação complexa. “No fundo, eles têm uma certa admiração um pelo outro”.

FHC agora diz que, ao contrário de 2018, optaria por Lula num hipotético segundo turno contra Bolsonaro na eleição do ano que vem.

Com as pesquisas apontando para este cenário, a cena de uma nova união, quatro décadas e meia depois da refeição festiva na cantina de São Bernardo, está no horizonte, em que pesem os anos de críticas pesadas de parte a parte.

Neste cenário, o tucano poderá tornar realidade o desejo que expressou em entrevista ao cineasta Fernando Grostein em 2018, publicada no jornal Folha de S.Paulo. “Se eu pudesse reviver a história eu tentaria me aproximar não só do Lula, mas de forças políticas que eu achasse progressistas em geral”, disse FHC.